Testemunho de Janeiro de 2023
Estes testemunhos preenchem as páginas da Lifeline, a revista mensal de Comedores Compulsivos Anónimos. São resultado do trabalho de pessoas que escrevem, não como autores profissionais, mas como comedores compulsivos que estão se recuperando através da prática do programa de Doze Passos.
Como reescrevi o Primeiro Passo
Esta não é uma história das mais felizes, mas não é um relato de fracasso. É um relato de sucesso, porque neste programa geralmente aprendemos algo de valor, principalmente se estamos na armadilha. Sou uma pessoa que normalmente não lida bem com os altos e baixos da vida diária, mas durante um período de quatro meses, recentemente, lidei de modo são com uma operação cirúrgica grave, com a doença grave do meu avô, com uma visita surpresa de três semanas da minha mãe (com quem tive um relacionamento turbulento), com um desastroso corte de cabelo que me deixou parecida com um porco-espinho, com uma enorme conta médica que foi rejeitada pela nossa companhia de seguros, com um novo emprego em que faço algo que nunca tinha tentado antes, com uma visita do meu pai e minha irmã durante os feriados, que inclui idas e vindas do aeroporto por causa da neve, com um grande desentendimento com uma muito amada irmã de CCA, com um inexplicável ganho de peso de 3,600kg numa semana, e com outros itens menores que até já esqueci.
Encarei de frente cada problema, disse a Oração da Serenidade, permaneci abstinente e sobrevivi. O que deu errado? Comecei a pensar. Tinha algumas boas ideias e esta minha formidável “recuperação” era prova de que agora podia lidar com tudo. Sabendo que uma das razões pelas quais como demais é a obliteração de sentimentos, resolvi que cada manhã, depois da meditação, escreveria o que estava sentindo. Isso serviria para alcançar duas metas: ficar em contato com o que eu realmente estava sentindo (que eu frequentemente confundia com fome) e me daria oportunidade de tentar imaginar o que poderia fazer em relação a esses sentimentos (aceitar os que não podia mudar, mudar os que poderia mudar, e assim por diante). Isso funcionou tão bem que mudei o Primeiro Passo para: “Admito que sou impotente perante meus sentimentos, e eles são a causa da ingovernabilidade de minha ingestão de comida”.
À medida que a quantidade de dias de abstinência aumentava, e eu ultrapassava esses marcos “mágicos” – vinte e um dias, sessenta, noventa – ficava mais e mais indiferente à comida em si mesma. Não achava mais que fosse necessário ignorar os anúncios comerciais de gulodices na TV; eles não me afetavam mais! Não evitava mais ler certas revistas que eu sabia conterem mais anúncios coloridos de alimentos que boa matéria para leitura. Comecei a observar as fotografias e a dizer-me que as estava admirando por sua “qualidade artística”. Até comecei a ler receitas de pratos que sabia que nunca mais comeria – só por curiosidade, ou para o caso de precisar de algo especial para oferecer a uma visita. Permiti que minha família trouxesse novamente para casa aqueles alimentos de minhas comilanças (todos ruins para eles, como para mim), só porque a comida não me incomodava mais. Eram esses os sentimentos confusos com que tinha de me preocupar.
Bem, parecia muito melhor saber que eu estava apenas sendo emocional demais, sensitiva demais, que tinha gênio exaltado, que era até um pouco neurótica – em vez de ser impotente em relação a uma coisa estúpida como a comida. Isso sempre tinha sido muito humilhante. Aquelas pobres outras pessoas de CCA! Provavelmente eu poderia parar por aqui, e você já saberia o resto da história. Mas vou continuar, porque estou trabalhando em não deixar coisas por terminar.
Certo dia percebi que as circunstâncias eram tais que ia ter de sair do novo emprego de que gostava tanto. Estava angustiada com autocomiseração, depressão, raiva e frustração. Tinha de começar a me ajustar para lidar com esses sentimentos. Mas o que eu fiz foi ir direto para a cozinha procurar certo alimento – apenas para olhar para ele. Certamente não queria comê-lo; apenas tinha que lidar com os sentimentos. Fui limpar a casa, mas pouco depois estava de volta à cozinha, cheirando. É claro que não estava pensando em comer… O que estava errado comigo? Não pedi ajuda. Não rezei, não li nenhuma literatura; ainda pensava que não precisava disso. E assim a comida de que tinha zombado, rido, e com a qual eu tinha flertado durante quatro meses tornou-se toda-poderosa, e optei por voltar à gaiola de esquilo que é a vida com o comer compulsivo.
Se achei que tinha pensamentos nocivos enquanto estava abstinente, tinha esquecido como os pensamentos podiam ser realmente doentios quando desaparece o respeito próprio e a aversão por mim mesma fica desenfreada. Levei muito tempo para voltar a algo que pudesse chamar de novo de boa abstinência. Mas está bem; aprendi algo que acho que nunca vou esquecer. O programa é ótimo justamente do jeito que é. Ninguém foi capaz de sugerir algo melhor. Você pode ter certeza de uma coisa: nunca vou tentar de novo.
Janeiro 1980